terça-feira, 24 de março de 2015

Passageiro Escolhido

                Desde cedo ele aprendeu o que uma promessa não cumprida trás intrínseca a si. Vindo de um lar desconstruído por falsos acordos passou manhãs sentado esperando por pessoas que não apareceriam e tardes cobrando atenção de pessoas que não poderiam satisfazê-lo. Viu gargalhadas serem lançadas graças à mentiras contadas e lágrimas escorrerem pelo exato mesmo motivo. Viveu todas as traições e presenciou todas as deixadas na mão que só a juventude é capaz de entregar e por isso desde que se entendeu responsável por seus atos se forçou a só se comprometer com o que acreditava poder cumprir.
                Levou isso tão a sério que afastou amizades, perdeu empregos, levou tapas, chutes, socos e mesmo assim se manteve fiel a esse seu ideal. O mais recente dessa saga de reveses se deu no fim do ano, após uma particularmente traumática tentativa de construir uma vida a dois onde ambos só causaram falsas esperanças e traíram todos os pactos entre eles. Mas o tempo e as mágoas passam, assim como a dor e o medo. E no auge do torpor vindo de um pós amor eis a seguinte cena:

                Ônibus cheio, ele em pé lendo um livro não muito interessante que segurava com apenas uma mão enquanto a outra estava agarrada à barra com a mochila deixando marcas no antebraço. Ao perceber isso, a garota que estava sentada mais próxima a ele se propõe a segurar sua bolsa e o garoto ao reparar no rosto daquela jovem sente quase que imediatamente um calor tomar-lhe as bochechas e sem graça aceita a cortesia, e se antes o livro já não era interessante agora ele sequer faz sentido. Entre olhares para as letras e olhares – cada vez mais longos – para aquele rosto, ele vai prestando cada vez mais atenção aos detalhes que o conjunto de genes entregou para aquela garota. Era sem dúvida uma das meninas mais bonitas que ele já tinha visto, cabelos castanhos presos em um simples rabo de cavalo mas que permitia que algumas mechas caíssem pelo rosto branco, quase pálido na verdade, sem nenhuma marca de nascença a não ser um pequeno ponto branco logo acima da covinha esquerda do sorriso. Eles estavam trocando sorrisos. E olhos azuis dela se tornavam ainda mais translúcidos com as rugas do sorriso, ele estava preso naqueles olhos. E ao perceber isso fugiu rapidamente para o livro, mas toda vez que tenta se concentrar em alguma letra ele se via lembrando de algum detalhe que ele talvez tenha deixado passar naquele rosto. Ao buscá-la com os olhos algumas vezes ela também está olhando, em outras mexendo no celular e em uma única escrevendo. Ao chegar no seu ponto ele teve que dar tudo de si para ser capaz de pedir a bolsa de volta, agradecer e perder aqueles olhos de vista.

                Chegando em cada ao mexer na bolsa ele acha um bilhete com um nome e um número de telefone. Com as mãos tremendo ele busca o isqueiro no bolso e queima o papel até o nome e toda a sequência de números desaparecer. Ele solta as cinzas no chão e sai para fumar um cigarro pensando na lista que fez em dezembro para o ano novo e cujo primeiro tópico era não se envolver com ninguém.


<Augusto Nessuno>