quinta-feira, 12 de março de 2015

Os olhos não eram meus ainda

Mas um dia seriam, disso eu tinha certeza.

Enquanto eu esperava ouvia música. Ouvia muita música nessa época. E ouvia os sons da cidade caos em que eu vivia. Passei a admirar um tanto mais o silêncio também. Vez ou outra meu pai me levava ao parque. Eu ouvia os pássaros e o balançar dos galhos das árvores. Sentia o cheiro da grama molhada pela chuva no dia anterior.

Fui entendendo e apreendendo o mundo de outros jeitos, diferentes daqueles com qual eu estava acostumada.

As pessoas me perguntavam como eu me sentia. E eu sempre dizia estar ansiosa mas bem. Pra falar a verdade, eu estava muito esperançosa. Todo dia antes de dormir eu repassava mentalmente os acontecimentos do dia e dizia para mim mesma que tudo ia ficar tudo bem.

Eu sentia muita saudade de ler. Meu pai lia para mim. Sempre os livros favoritos dele. Eu não me importava e alguns favoritos dele, eram meus favoritos também.  Foi nessa época em que conheci o que ele mais gostava na literatura. Nunca estivemos tão próximos com este nosso gosto em comum.

Um dia meu pai leu o “Ensaio sobre a cegueira” do Saramago. Ele não gostava tanto, eu muito. Era bom ouvi-lo lendo esse por causa do ritmo imposto pela ausência das vírgulas e pontos.

Mais do que nunca eu me identificava com este livro.

Eu enxergava muito branco nesta época, como se eu tivesse nascido e vivido toda a minha vida na neve.


Foi uma época estranha e muito pouco colorida aquela em que eu passei esperando na fila por um transplante de córnea.

(Mayra Guanaes)