Mas um dia seriam, disso eu tinha certeza.
Enquanto eu esperava ouvia música. Ouvia muita música nessa
época. E ouvia os sons da cidade caos em que eu vivia. Passei a admirar um
tanto mais o silêncio também. Vez ou outra meu pai me levava ao parque. Eu
ouvia os pássaros e o balançar dos galhos das árvores. Sentia o cheiro da grama
molhada pela chuva no dia anterior.
Fui entendendo e apreendendo o mundo de outros jeitos,
diferentes daqueles com qual eu estava acostumada.
As pessoas me perguntavam como eu me sentia. E eu sempre
dizia estar ansiosa mas bem. Pra falar a verdade, eu estava muito esperançosa.
Todo dia antes de dormir eu repassava mentalmente os acontecimentos do dia e
dizia para mim mesma que tudo ia ficar tudo bem.
Eu sentia muita saudade de ler. Meu pai lia para mim. Sempre
os livros favoritos dele. Eu não me importava e alguns favoritos dele, eram
meus favoritos também. Foi nessa época
em que conheci o que ele mais gostava na literatura. Nunca estivemos tão
próximos com este nosso gosto em comum.
Um dia meu pai leu o “Ensaio sobre a cegueira” do Saramago.
Ele não gostava tanto, eu muito. Era bom ouvi-lo lendo esse por causa do ritmo
imposto pela ausência das vírgulas e pontos.
Mais do que nunca eu me identificava com este livro.
Eu enxergava muito branco nesta época, como se eu tivesse
nascido e vivido toda a minha vida na neve.
Foi uma época estranha e muito pouco colorida aquela em que
eu passei esperando na fila por um transplante de córnea.
(Mayra Guanaes)